Em uma tarde quente de domingo, procuro em fotos antigas um pedaço de mim que sempre esteve lá, misturado ao sorriso disfarçado, à grama arrancada com os dedos e à imensa vontade retraída de pular no mar. Em meio a tantos documentos, encontro um sorriso que não existia, mas que a câmera arrancava de mim, arrancava da carne sangrando, doendo, das bochechas forçadas e dos olhos apertados sob a luz do sol.
Yo, de niño, temía que el espejo
me mostrara otra cara o una ciega
máscara impersonal que ocultaría
algo sin duda atroz. Temí asimismo
que el silencioso tiempo del espejo
se desviara del curso cotidiano
de las horas del hombre y hospedara
en su vago confín imaginario
seres y formas y colores nuevos.
(A nadie se lo dije; el niño es tímido.)
Yo temo ahora que el espejo encierre
el verdadero rostro de mi alma,
lastimada de sombras y de culpas,
el que Dios ve y acaso ven los hombres.
— El espejo, en Historia de la noche (1977), Jorge Luis Borges —
Nas caixas velhas, pedaços de uma infância pouco registrada, uma fração de tempo que foi sendo protegida nas poucas memórias daqueles que estavam por perto. Como será que sorriam meus dentinhos de leite? Como será que corriam meus olhos pelo cômodo? Qual ritmo minhas perninhas escolhiam para explorar aquele mundo do tamanho de um quintal?
Olhando para imagens estáticas, tendo imaginar o movimento, a sequência, o dia, as pessoas por perto. Busco pelas sensações que estavam em meu corpinho em cada click feito por algum familiar ou fotógrafo de rua. Fantasio minha própria história e costuro ela junto de alguns relatos, lembranças e poucas memórias.
O luxo das câmeras nos anos 1990 privaram uma geração humilde dos rastros de um tempo. Qualquer registro fotográfico perdido no fundo de uma caixa de tênis é item precioso, é tempo na mão, é descoberta de um tempo que o espelho não vê.
Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico.
— O Espelho, em Primeiras Estórias (1962), João Guimarães Rosa —
O que eu preciso agora vai além do espelho, preciso do meu reflexo do passado — aquele que refletia no espelhinho quebrado que ficava na parede do banheiro. Eu era pequena demais naqueles tempos, quando olhava para a peça colada na parede enxergava apenas o topo da minha cabeça — fiozinhos de cabelos quase brancos que um dia iriam escurecer, se transformar em franja, em mechas rosas, azuis, roxas. Retratos de uma adolescência meio camaleoa, meio bichinho selvagem.
O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção?
— O Espelho, em Primeiras Estórias (1962), João Guimarães Rosa —
As câmeras não registraram o meu sentir, o espelho não reflete meu miolo. Entre aquilo que enxergo e aquilo que sinto, existe um abismo profundo, escuro e lamacento.
Só me resta vasculhar.
Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.
— O Espelho, em Primeiras Estórias (1962), João Guimarães Rosa —
*para ler o conto completo de João Guimarães Rosa, acesse aqui.
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